domingo, 21 de setembro de 2014

Sensibilidade

 
 

"Sabe o que eu quero de verdade? Jamais perder a sensibilidade, mesmo que as vezes ela arranhe um pouco a alma. Porque sem ela não poderia sentir a mim mesma..." Clarice Lispector



Ver ou vivenciar qualquer situação que possa tirar da própria zona de conforto é incômodo e muitos preferem não ter que sair. Não ter que pensar. Não ter que sentir.
 
 
Não condeno. Cada um busca um escape ou uma fuga que consegue encarar.
 
 
Acho muita coragem quem quer sentir, quem quer pensar, quem não foge.
 
 
Mais difícil seria se por no lugar de outra pessoa, saber o que ela sente, se nem entender os próprios sentimentos.
 
 
Não vejo a sensibilidade como fraqueza. Não vejo o choro como impotência. Vejo uma luta. Vejo uma busca, um caminho, uma profundeza.
 
 
Tentar esquecer ou principalmente ignorar, pode fazer bem. Pode ser inteligente. Pode ser saudável. Concordo, acho que estabilidade emocional é importante. Mas acredito que se entregar em algumas situações e aguçar a sensibilidade faz da fragilidade uma força.
 
 
Encarar é para os fortes.
 
 
Viver não é só para ser fácil. Não é só para ser feliz. Não é só para ser vitorioso.
 
 
Na dificuldade, na tristeza e na derrota se aprende e cresce.
 
 
Não podemos garantir o destino que cada um vai ter, mas podemos fazer da vivência uma lição. Para quem fica ou para nós mesmos.
 
 
Uma dose de sensibilidade aí?

quarta-feira, 16 de julho de 2014

O cuidar

 
 
Há 3 semanas observo uma relação tão bonita e rara de ser vista.
 
Todo dia quando chego na enfermaria pelas 8h da manhã, ela já está ali do lado dele.
 
Cada fio de cabelo que já é escasso na cabeça dele penteado com muito zelo por ela. As unhas cortadas.
 
Quando a gente chega, ela dá um sorriso largo.
 
Estão investigando câncer pra ele.
 
Ela já sabe.
 
Disfarçadamente, ela pergunta algumas dúvidas sem ele perceber e o tranquiliza.
 
Conversando com ela, percebi que todo dia de manhã cedo ela pega duas conduções. Traz roupa limpa e lençol lavado. 
 
Limpa a cama com álcool, leva ele pro banho e fica ao lado cuidando.
 
Quando aconteceu dele vomitar, ela buscou rapidamente um pano limpo de suas trouxinhas, molhou um pouquinho em água limpa e encostou pela nuca, pela testa.
 
Depois do vômito, buscou outro pano, secou e limpou o rosto.
 
Todo imprevisto que acontece, quando acaba, ela olha para ele e diz:
 
- Pronto, passou. Estou aqui.
 
Até a noite, quando volta pra casa.
 
Por outro lado, ela ganha um sorriso pálido mesmo sentindo dores, sem conseguir se alimentar e vomitando.
 
Um carinho de uma mão já magrinha e um olhar de confiança.
 
Mesmo sem falar e com dificuldades de andar, ele tenta se levantar, faz força, tenta ajudar para não ficar pesado a ela.
 
Ver os dois caminhando em direção ao banheiro para mais um banho do dia me fez refletir que ter um companheiro assim exige cuidados. Amar é cuidar.
 
Assistir uma cena dessa me faz crer que a humanidade não está tão perdida.
 
São 48 anos de casados e não perderam a alegria de viver um amor.
 

domingo, 29 de junho de 2014

O tempo





Já pararam para reparar que cada vez mais as pessoas querem que a vida aconteça de uma forma mais ágil?

Pode ser a fila de espera para ser atendido, ou o exame físico na consulta, ou o tratamento proposto. Muitos nem querem esperar para auscultar o pulmão, pedem logo uma radiografia. Alguns não querem tomar remédio por 7 dias, perguntam até por injeção que trate mais rápido. 

Quando pedimos para voltar muitas vezes não gostam, querem resolver tudo na hora. Exigem uma rapidez que as vezes a própria natureza não nos permite oferecer. 

Uma virose, por exemplo, que muitos cansam de ouvir e acham que é pouco caso do médico quando recebem esse diagnóstico. Bom, é uma maneira genérica de chamar doenças quando não se consegue confirmar o vírus causador. É bem comum mesmo. Pode ser uma gripe, ou uma gastroenterite, que seja, uma doença que tem seu curso natural causado pelo vírus, sendo autolimitada. Em pouco tempo vai melhorar, mas como assim não resolver o problema hoje? Oferecemos tratamento dos sintomas mas ficam desconfiados pelo diagnóstico. Entendo que muitos médicos não explicam e apenas dizem: uma virose. Realmente nesses casos concordo que é chato ir ao médico para ele dizer só isso.

Muitos saem da consulta pensando 'Como assim, tive febre e nem me deram antibiótico. Que medico ruim'. Poxa, mas se houvesse mais tempo para explicar isso que digo aqui. Se todos estivessem mais dispostos, com mais paciência para explicar, além de ouvir, podíamos ter mais gente saindo da consulta entendendo, concordando com o médico sobre o próprio diagnóstico e que o tratamento é esse mesmo, esperar. 

É difícil desmitificar teorias que as pessoas criam. Amigdalite muitas vezes é causada por vírus, mesmo quando há pus, mas muitos só se satisfazem quando é prescrito antibiótico. Acaba que o uso de antibiótico indiscriminado está a cada ano selecionando mais e mais bactérias resistentes. 

Quando alguém faz uso do antibiótico em tempo inferior que o prescrito pelo médico permite que as bactérias naturalmente menos sensíveis aquele antibiótico continuem a crescer, se proliferar dentro do organismo, chegando a um número de bactérias que antes eram sensíveis, agora se tornam resistentes ao mesmo antibiótico. Então, não devemos banalizar esse uso.

Essa pressa que a vida atual nos cria também pode ser visto nas dietas doidas que as pessoas querem emagrecer 10 kg em sei lá quantas semanas. Recorrem a remédios sem prescrição médica. Se parar para falar da quantidade de remédios que as pessoas se automedicam, teria uma lista para fazer.

Muitos tomam esses remédios por conta própria sem ir ao médico por quererem resolver logo. Pois é, logo logo.. uma pressa que pode mascarar as doenças. 

Hum.. estou com uma lesão dermatológica, passei corticoide e amenizou. Isso pode esconder talvez uma lesão pior que ali existe. Hum.. dor de barriga, tomei um analgésico para amenizar, sumiu e não procurei um médico. Atitudes assim podem esconder uma alteração que serviria de guia pro médico. Muitos chegam em estágio que não esperaríamos por conseguir se automedicar e ir levando até realmente achar que precisa de um médico. 

Escuto muita gente reclamando dos médicos e concordo que muitos deixam a desejar. Mas todos nós, que algum dia fomos pacientes, já paramos para pensar que essa vida corrida, essa exigência de agilidade que o mundo pede realmente pode atrapalhar? Que também pedimos pressa em tratamento, que também ficamos irritados com demora em diagnóstico? Não digo a demora que vemos na saúde pública. Essa realmente não devia acontecer e podia, na verdade, DEVIA ser mais rápida. Só que esse assunto são outros quinhentos, deixamos para outro post. Esse post é apenas para refletir sobre o tempo que exigimos nem sempre é aquele que podemos ter. Há uma distância entre querer e acontecer. Se nesse espaço existe o tempo, precisamos aprender a lidar com ele. 

Não digo para deixarmos de exigir os próprios direitos, como um atendimento bom, mas para que todos nós possamos discernir se estamos extrapolando nessa cede de fazer acontecer, de resolver de forma imediata. 

Não se deslumbre com a rapidez que a internet nos fornece. A vida existe na maioria das vezes com um curso natural que apenas precisamos enxergar.


segunda-feira, 23 de junho de 2014

Doença incurável

 
 
 
A doença não é preconceituosa, pode atingir raças, gêneros e idades diferentes. Desde crianças até idosos.

Algumas pessoas que se consideram inatingíveis, quando apresentam uma doença incurável, como algum câncer em estágio terminal, reconhecem que existe algo mais poderoso do que ser chefe, ou líder, ou donos de empresas. Não somos escolhidos, acontece. Muitas vezes é imprevisível e derruba qualquer poderoso chefão.

Não digo que existe culpa e nem justiça estar doente, ao contrário, é imprevisível, obra do destino que prega peças aos inocentes e aos maldosos.

Não há privilégios quando a doença se torna devastadora, deixamos de curar para aliviar os sintomas, aliviar as feridas, a dor. Torna-se uma luta pela sobrevivência.

São guerreiros que deixam as luvas de lado, sem pré-treino, sem técnica e vão a luta. A cada dia, o objetivo de viver bem.

Uma doença incurável não significa condenação a morte, pois todos somos condenados a isso. Vamos todos um dia morrer. Mas pode servir de experiência, de aprendizagem. Vejo uma valorização pela vida que só os que passam por tais situações podem dizer.

Ter um diagnóstico desse tipo é impotente. Uma prova que não mandamos em tudo e que não ocorre tudo da forma que desejamos. Mas acredito que há beleza nos olhos dessas crianças ou desses jovens ou desses adultos ou desses idosos, que atingem uma maturidade a frente.

Não olho com olhos de tristeza e de dever não cumprido, olho com a esperança de que há muito a se aprender com eles. Acredito no poder que eles tem, acredito na experiência enriquecedora que podemos ter juntos.

Existe uma sabedoria em cada um que se acentua nesses momentos de reflexão a vida. Um grande apreço por todos os guerreiros que viveram ou vivem momentos assim.

Eu acredito na força desses guerreiros, e você?

Desenho


 

Mexendo no meu caderno, acho esse desenho.
 
Filha de uma paciente, Larissa de uns 7 anos, brincava com um bonequinho sozinha dentro do consultório a espera da mãe.
 
Quando comecei a examinar, ela levanta a blusa da mãe pra ajudar, pede silêncio também.
 
Perguntei:
 
- Vai ser médica?
 
Ela me responde muito firme sem dúvidas:
 
- Não.
 
Na espera da professora perguntei do que ela gostava.
 
Não tive resposta.
 
Perguntei:
 
- Gosta de desenhar?
 
Ela me responde na lata:
 
- Quem não gosta?
 
- Desenhar realmente todos podem, mas sabe fazer um desenho bem bonito?
 
Ela demorou a responder, percebi pelo rosto que não esperava essa pergunta, se sentiu desafiada.
 
- Sei sim.
 
- Iria gostar de ver seu desenho, faz um pra mim?
 
Ela aceita o papel e a caneta, sai de perto de mim e começa a desenhar.
 
Professora entra, tenta interagir com ela e nada. Ela realmente se concentrou.
 
Quando acabou a consulta, a mãe teve que pedir pra ela parar porque tinham que ir embora.
 
Ela me entrega, pede pra eu abaixar e diz no meu ouvido:
 
- É minha obra, assinei pra vc.
 
Criança esperta!

domingo, 22 de junho de 2014

Pedimos socorro


 
Vejo pacientes demais, vagas de menos.
 
Hipertensos, dislipidêmicos demais, disciplina de menos.
 
Infartos, AVCs evitáveis, mortes pelos corredores.
 
Vejo teoria bonita, prática inexistente.
 
Palavras ditas, pouca ação.
 
Cidade destruída, avisos sem prévio.
 
Corrupção demais, engajamento de menos.
 
Quando digo corruptos são todos que subornam os outros por qualquer valor que for, mesmo sendo um valor pequeno, ou os que tiram vantagem. Vejo gente punindo sem perceber que fazem o mesmo mas em proporção menor. Não atinge uma população inteira, mas atinge uma, duas, três.
 
Vejo marca valorizada demais, produto pobre.
 
Culto ao corpo, poucas livrarias.
 
Vejo todos nós, me incluo, obrigados a viver por esse regime.
 
Obrigados a viver dessa saúde, dessa economia, dessa política, dessa educação. Ponto chave que poderia mudar: educação.
 
Ensinar cidadania, ética, cultura, primeiros socorros, saúde, economia, gestão, educação não sexista, habilidades manuais, visuais e auditivas, gastronomia, artes, filosofia, música, esportes, psicologia, sociologia.. Não vejo escolas com esse preparo.
 
Se há falta de interesse, pode ser por falta de estímulo ou por falta de identificação. Para isso, conhecimento é importante para desvendar o dom que muitos desconhecem que possui e facilitar o auto conhecimento.
 
Vejo pessoas perdidas sem rumo, buscando alternativas que acabam se auto sabotando. Como as drogas, os remédios, o sexo, a violência..
 
Não vejo incentivo de mentes pensantes. Vejo pessoas sábias desperdiçadas.
 
Tento tirar a lição que por mais que eu viva nessa sociedade e eu tenha que aceitar isso, vejo que minha vida em especial posso mudar assim como minha mente.
 
Posso caminhar sozinha, lutar dentro desse sistema fechado, mas certa de que minha trajetória aqui não vai ser a toa. Não vou deixar me corromper, não vou me 'prostituir' na medicina.
 
Não quero apenas dinheiro, quero ser impagável.
 
Não quero ser apenas magra, quero ser saudável.
 
Não quero ter vícios, quero ter controle sobre mim.
 
Não quero ser apenas inteligente, quero ser sábia.
 
Não quero uma metade, quero somar.
 
Não quero ter filho, quero criá-lo.
 
Não quero ser um fantoche, quero ter vida própria.
 
Apenas eu mudando não vou mudar o mundo, eu sei, mas não deixarei que o mundo me faça ser o que não sou!
 
Apenas compartilhando um desabafo que é meu mas que também podem ser de muitos que sentem e vivem o mesmo por aí.

Quem sou eu

 
 
Apenas mais uma médica se formando. Não sou escritora e nem tenho a intenção de tornar isso um meio de propagandas. Quero dividir o que sinto e o que vejo. Confesso que muitas vezes tenho dificuldade de pôr em palavras, até perceber e acreditar que todos podemos contribuir de alguma forma ao expor sentimento que seja.

 
Decidi dividir meus textos, meus pensamentos e minhas histórias. Tento buscar uma forma de promover a esperança, o amor, a fé e a saúde que tanto prezo, como forma de texto também.

 
Vivemos em uma época difícil de acreditar nas pessoas, saber em quem confiar e destinar nossas vidas quando adoecemos. Mas acredito que ainda existe quem vê através da dor, do medo, da tristeza, uma forma de aprendizagem, de ensinamento e de superação.

 

Não se trata de um blog sobre diagnósticos, nem tratamentos como podemos encontrar em artigos muito bem elaborados pela internet. A intenção é mover energia, tocar corações. Pode ser um sequer, fico satisfeita.

 

Não quero perder a sensibilidade com essa nova jornada na medicina. Continuarei a lutar por mais amor, mais gentileza e mais doçura entre todos. Remédio que pode servir, até para quem é sadio.